terça-feira, maio 01, 2007

Os contos de Jorge Luis Borges


Os contos de Jorge Luis Borges são contos de uma forte interactividade com a história e com outros livros, em que se apaga a distinção entre ficção e realidade. Há um gosto pelos enigmas, pelo desafio à inteligência do leitor que tem que agir como um detective, sendo que uma interpretação linear nunca é dada de mão beijada. Há um pormenor em "O jardim dos contos que se bifurcam" (não no conto, mas no livro a que o conto dá título) que ilustra muito bem isto: Em "Análise da obra de Herbert Quain", é dito no final que "As ruínas circulares" (outro dos contos de "O jardim...") é extraída da obra "The rose of yesterday" de Herbert Quain (escritor fictício), e faz parte também do livro "O jardim dos caminhos que se bifurcam". Não sei se é possível decidir se a última referência é ao livro propriamente dito de Borges se à obra de Ts'ui Pên referida no conto que analisámos nas aulas. Talvez todo o livro possa ser lido como a tentativa de construção do labirinto de Ts'ui Pen por Borges.
Estas referências são circulares. Há um enorme número delas, remetendo-nos para outras partes do livro, da obra em geral de Borges, da história da literatura, da história das enciclopédias, muitas vezes desembocando em citações e referências históricas falseadas. Nisso Borges pode ser considerado um percursor do hipertexto, pela trama de ligações que constrói. O espaço web também ele pode ser lido como um enorme labirinto. De facto, quem encontrou o centro ou o fim da web? Ou mesmo a saída? Trata-se de um espaço absorvente e fascinante, que nos distrai da vida lá fora. E que às vezes nos leva até "dead links".
Para Jorge Luis Borges a tradução de um livro podia ser inclusivé superior ao original, pelo que as suas traduções são levemente infiéis (no que há um caso similar em Portugal, o de Mário Cesariny ao traduzir, pelo menos, Arthur Rimbaud). As distorções nos seus livros são não só dos factos históricos, mas as distorções do tempo efectuadas pela memória. A memória age como um elemento libertador, livrando-nos da tautologia dos factos.
Inerente a tudo isto está o signo do lúdico: tudo não passa de jogo, de mero divertimento. E os jogos, é sabido, têm regras arbitrárias: se inventar um jogo, invento também as suas regras. Assim Borges compraz-se em inventar mundos que destrói de seguida, metafísicas experimentais e temporárias. Os labirintos de Borges são convites ao devaneio, onde o sentido não está em encontrar a saída, mas em saber deixarmo-nos perder e apreciar a insólita paisagem. Para o escritor é talvez o prazer de urdir uma teia, de fazer charadas, o gosto das tarefas impossíveis. Borges convida-nos a voltarmos a duvidar, como em crianças, se a lua continua no mesmo sítio quando não a olhamos. É portanto preciso saber brincar para não cairmos na inquietação, como adultos tão "seriosos" que às vezes somos...


"O labirinto", por Jorge Luis Borges

Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto.

(in Atlas - tradução de Miguel Angel Paladino)