a metáfora do corpo
Em My Body Shelley Jackson conseguiu metaforizar a autoconsciência do seu corpo através de uma obra de hiperficção segmentada em três dimensões narrativas - uma de observações, descrições, feitas no Presente ficcional, a determinada parte do corpo (primeira), que despertam uma memória relaccionada com essa parte (segunda), e se transformam em curtas narrativas de acontecimentos passados, dentro da mesma linha (terceira). Em qualquer um destes parágrafos, encontramos hiperligações que nos transportam para uma nova página onde - por semelhanças nem sempre semânticas mas sempre coerentes (e nunca aleatórias, ainda que pareçam, como as hiperligações nunca o são) - encontramos novos e novos textos, em cadeia labiríntica. É portanto uma dupla metáfora - a do corpo, e da da memória. Tal como o meio digital, com a sua multiplicidade de links e bifurcações, o corpo humano é um todo composto de parte autónomas e interdependentes. Tal como o meio digital, a Memória é um conjunto de recordações dispersas e interligadas, às quais chegamos pelos mais improváveis percursos de pensamento - percursos esses que modificam a forma como as vemos, ainda que aparentemente estáticas e finitas no Espaço e no Tempo - passados. Da mesma forma, para compreender a obra de Shelley na sua totalidade não basta ter todos os textos lidos. Há que ler todas as sequências, pois um percurso diferente é passível de gerar novas dimensões de significação - umas mais significativas que outras.
Para metaforizar o autoconhecimento do corpo, a autora encontrou ainda dois planos de representação. Um de consciência sensorial - conhecimento do corpo através de sensações tácteis -, e outro de representação pictórica - dependente da sua perspectiva pessoal e das suas capacidades técnicas, por assim dizer, de o fazer. São, respectivamente, o plano da narrativa e o plano do desenho. Talvez um dos motivos que a tenham levado a acrescentar desenhos seus à sua obra, seja a intenção de mostrar aos leitores a sua visão pessoal, para os ajudar a entrar no jogo, por assim dizer. Na segunda página da obra, a seguir ao título, entrega ainda o seu corpo ao jeito de índice, procurando fugir à leitura segmentária típica do códice. Porém, penso que esta técnica resultaria tanto num como noutro meio. Se a obra de Shelley fosse transposta para um livro impresso, a página a seguir à capa podia ser também o mesmo desenho do seu corpo, com uma nota indicando o número da página, ao lado de cada parte do corpo. Por exemplo, "<- Braço (pág. 47)". Lá ia o leitor até à pág 47 encontrar o texto referente a braço. A meio desse, encontrava "xpto [sublinhado] (pág 102)". E seguia até à pág 102, por aí fora. Claro que, tal como foi referido na aula, pode surgir a tendência de ler o texto todo de seguida, da cabeça aos pés, mas também na obra digital alguém poderia escolher esse método de leitura, num Back/Forward de algumas horas. Tanto numa como noutra hipótese, a curiosidade despertada pela simples existência de notas ou hiperligações é bem mais interessante. Aliás, o leitor atento concluiria rapidamente que ler o texto todo de seguida não faria o mesmo sentido, não teria o mesmo seguimento lógico. Existem já vários livros assim e poucos devem ter tido a triste paciência de ler o livro todo ordenadamente e não perceber a história.
Ainda assim, a metáfora principal, do Espaço, do corpo convertido num "gabinetes de curiosidades", está bem de acordo com o percurso espacial, com a configuração de signos em espaços virtuais que simulam um espaço real à espera de ser percorrido, típicos do meio digital.