segunda-feira, maio 14, 2007

Descobri aqui uns papéis que andavam perdidos e são sobre...

"Exercícios de estilo" de Raymond Queneau é uma obra que joga com as potencialidades da linguagem: os modos e valências gramaticais, os jogos de palavras, as linguagens secretas, artificiais ou puramente inventadas... É preciso conhecer o funcionamento da língua para a desmontar com intuitos estéticos ou meramente lúdicos. Uma construção destas resulta de um reflexão formal sobre a linguagem, sobre a materialidade dos seus signos, e chama o leitor a um papel activo de descodificação.
Os exercícios funcionam com um mecanismo que é contar sempre a mesma história de 99 maneiras diferentes, a partir de diversas regras que lhe alteram a forma. Algumas destas regras dão lugar a uma grande aleatoridade no sentido do texto, como acontece em "Tranladação", em que no texto-matriz todos os elementos portadores de carga semântica são substituídos pelo sétimo termo seguinte no dicionário. Em "Definições" as palavras com carga semântica são substituídas pela correspondente entrada de dicionário, criando o efeito bizarro de uma espécie de escritor hiper-realista e maníaco com os pormenores. Óbvio que neste tipo de textos o interesse está apenas no lado não-semântico da linguagem, o lado dos significantes: ninguém lerá os 99 exercícios à procura do que vai acontecer, porque ao fim de alguns já o sabe mais ou menos. O gozo está todo no uso imprevisto, criativo e original da linguagem. Assim apreciamos a sucessão luxuriante dos níveis de linguagem, idiolectos, estereotipias da linguagem, deformações mecânicas, sem pensar muito no argumento, que no fundo não interessa para nada.
Raymond Queneau disse uma vez: "Sou uma macieira. Dou maçãs. cabe-lhe a si decidir se gosta delas redondas ou oblongas, esféricas ou piriformes, matizadas, ou, então, verdes e não maduras. Decerto não pretende que eu lhe forneça, ainda por cima, a faca e o garfo".
Um aspecto interessante a que a introdução à edição portuguesa da obra me chamou à atenção foi o facto de a tradução de um texto destes não poder pura e simplesmente transpor o sentido original num português escorreito, nem adequando ao nosso contexto cultural nem mantendo o original. É que, tecnicamente, é impossível traduzir "Lipogramas" a partir do original quando este se baseia na eliminação da letra "e" no original. As palavras correspondentes em português conteriam a letra "e", e tornou-se necessário criar um texto novo, que respeitasse o sentido, mas muito, muito mais livre... e eliminando não a letra "e" mas a "a", por ser a mais frequente no nosso dicionário. Aqui a referência da tradução foi a regra e não o texto.
Em "Per-er-oosh eenglayzush" só consegui perceber o texto lendo-o em voz alta, pois o aspecto das letras parece teclas ao acaso, mas com mais atenção reparei que era como se fosse escrito para que através das regras (que já são em si pouco claras) de leitura dos fonemas em inglês se possa ler o texto tal como ele é em português. É uma grafia à inglesa de um texto em português, mas só ao ouvir o som é que o percebi. O que acontece neste como noutros exercícios é que as dificuldades na leitura é que o vão tornar interessante, obrigando-nos a nós, leitores, ao esforço muito activo de procurar a regra que permite a descodificação do texto. Assim, torna-se num desafio, num jogo, aliás, um jogo hilariante. Dei por mim a não conseguir conter o riso na biblioteca geral... Permitam-me dizer: grizei-me completamente.
Assim neste texto um dos aspectos mais interessantes é, para além do desafio ao leitor, o desafio ao tradutor. Tratando-se muitas das vezes de linguagens inventadas, estas têm uma grafia arbitrária pelo que há uma dose muito grande de liberdade criativa no estreito constrangimento de verter o mesmo texto (ou os seus mecanismos) numa outra língua.