domingo, fevereiro 25, 2007

o lá fora lá fora sem saber bem o que se tem dentro

If the doors of perception were cleansed everything would appear to man as it is, infinite.
William Blake

É assustadora a brutal ausência de sentido na vida. A tomada de consciência do infinito é a derradeira queda no abismo do absurdo. Valerá a pena o salto ou antes seguir a estrada de tijolos amarelos? Ana, como todos nós, vive em busca do feiticeiro.

Ao ouvirmos Dorothy Gale, Hunk – o espantalho-, Zeke – o leão cobarde- e Hickory – o homem de lata, a cantar alegremente “follow the yellow brick road”, a força mágica dos contos de fadas invade-nos, empurrando-nos a seguir incontestavelmente o caminho dos nossos sonhos, que após tornados e bruxas, nos diz que acabaremos por alcançar. Sem dúvida que é uma, e a, visão optimista da vida, aquela que incutimos a nós e aos outros, aquela em que a uma certa altura, mais cedo ou mais tarde, tomamos como nossa prerrogativa. Caso contrário, o vazio torna-se insuportável.
Ana era simples e feliz. Tinha uma casa, uma família, mantinha-se ocupada, gostava do que fazia. Assim ela o quisera e o escolhera. Tal como Ana, nós temos uma casa – seja ela um quarto, ou o mundo –, uma família – pais, irmãos, amigos, animais, meia dúzia de palavras num computador, personalidade múltipla –, e procuramos manter-nos ocupados com coisas que gostemos de fazer. Como queremos e escolhemos, simples ou não, somos felizes e livres dentro do possível, até já nos habituámos a ideia de que nunca encontraremos a liberdade absoluta, e de que a única certeza que temos na vida é a morte, e vivemos bastante bem com isso. Penso que o ponto fulcral do texto não esteja tanto na revelação sensorial que quebra a rotina de Ana, que a mensagem de Clarice não seja, ou pelo menos não só, uma crítica ao automatismo característico da sociedade ocidental pós revolução industrial, mas também um pequeno reminder à nossa pequenez no mundo.
Ana construiu o seu mundo, mas ao dimensioná-lo na infinitude do universo, apercebeu-se do quão mesquinhas e egoístas (serão efectivamente mesquinhas e egoístas?) eram as suas preocupações diárias e mundanas – sentiu pena do cego e nojo da grandiosidade do Belo, sentiu medo e solidão perante essa grandiosidade. Apercebeu-se da náusea do Amor, pois o que deveria (e será deveria e porquê) de facto amar? Quem era ela para ser feliz quando havia cegos (!) e tanta beleza que ignorava? E quem era ela para pôr em causa a sua felicidade quando havia cegos e tanta beleza no mundo? Seria bom ter um marido que lhe adivinhava os pensamentos? Mas não era tão bom ter alguém que soubesse exactamente o que pensava?...
Como a maior parte de nós, Ana soprou esta pequena flama que nos assombra, pois se algo é certo é que nada o é, e que o mundo não passa de uma questão de perspectiva.

No entanto, devemos, ou podemos, escolher não analisar esta reflexão sobre o absurdo da vida e insignificância das coisas, sob uma perspectiva negativa – pois se nada é efectivamente certo, correcto e bom, nada também será efectivamente drástico e dramático. Tudo depende da nossa atitude perante a vida, e, por isso mesmo, se há algo que nunca se porá em causa é a nossa felicidade. Pois ela não reside no palácio de Oz, mas na própria estrada. Não que isto signifique ser a ceifeira de Fernando Pessoa, feliz na sua ignorância, mas o red pill de Neo, isto na vida real, não conduz também obrigatoriamente a uma verdade terrível. Aspiraremos eternamente à Verdade absoluta, mas na consciente impossibilidade de a alcançar, há que analisar os “every things”, e ir com a família passear ao Jardim Botânico e conversar com o cego, que se calhar até tem uma vida bem invejável para contar.

sábado, fevereiro 24, 2007

Amor - Clarice Lispector


Sofro, Lídia, do medo do destino.
A leve pedra que um momento ergue
As lisas rodas do meu carro, aterra
Meu coração

Tudo quanto me ameace de mudar-me
Para melhor que seja, odeio e fujo.
Deixem-me os deuses minha vida sempre
Sem renovar

Meus dias, mas que um passe e outro passe
Ficando eu sempre quase o mesmo, indo
Para a velhice como um dia entra
No anoitecer

Ricardo Reis


Naquela que é a hora perigosa do dia - sem os filhos para cuidar, nem a casa para limpar - Ana tem medo.Medo que a rotina, que tão cuidadosamente criou ,se desfaça.Sozinha e com a casa impecavelmente limpa não tem como se esconder, já que nenhuma das máscaras serve: nem a de mãe, nem a de esposa, nem a de dona de casa.Desprotegida, mais exposta a si própria do que pode permitir, Ana sai.

Tudo quanto me ameace de mudar-me
Para melhor que seja, odeio e fujo

Foge.Sai para ir ás compras, no seu esforço diário de passar aquela hora sem perturbações.Mas desta vez, todo o tempo que Ana passou a construir a sua felicidade serena e controlada , desta vez todo esse tempo não serve de nada.Olhando pela janela do eléctrico vê o cego.É um cego que mastiga uma chiclete.As compras caiem no chão.Os ovos partem-se.Alguma coisa dentro de Ana parte-se também."Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse" , mas afinal explodiu.

Sofro, Lídia, do medo do destino

Sem querer, acaba sentada num banco do Jardim Botânico.Aquele mundo tão diferente do seu, tão cheio, desperta os seus sentidos e os seus pensamentos. Há muito que isso não acontecia.Observa a natureza como se nunca o tivesse feito antes: as frutas, as flores, os animais e a terra aparecem aos seus olhos de uma maneira nova - "era fascinante, e ela sentia nojo".

A leve pedra que um momento ergue
As lisas rodas do meu carro, aterra
Meu coração.

Os seus filhos esperam-na em casa e o jantar de família também.Está tudo igual, como ela tinha deixado: limpo e arrumado.

Deixem-me os deuses minha vida sempre
Sem renovar

Meus dias, mas que um passe e outro passe
Ficando eu sempre quase o mesmo

Mas Ana não é a mesma, a casa e a família como antes, mas não ela.O cego e o Jardim Botânico corromperam a estabilidade que até aí a mantinha longe dos males do mundo, das aflições e inquietações.Agora Ana tinha descoberto uma nova forma de amor: a capacidade estar atenta ao mundo e ao que de bom ou mau existe nele.

Lugares Comuns.

Ao viajarem entre "Amor" de Clarice Lispector e "Monotone" de João Miguel Queirós, os nossos olhos descobrem lugares inevitavelmente comuns. Talvez isso suceda de facto por ambos os textos serem retrato exímio de uma mesma realidade quotidiana. Realidade que irrepreensível e repetidamente conhecemos dos nossos dias.
Nesse ponto, é como se as palavras- tanto as que surgem sobre a forma de prosa como as que surgem sobre a forma de verso- não remetessem para nenhuma realidade a não ser a realidade que nós mesmos conhecemos e em nós recriamos no momento em que entramos em contacto com uma sua representação linguística. Este problema, porém, aproximar-nos-ia de questões que não são talvez as prementes questões a tratar por agora.
Tanto o texto estudado em aula como o texto que aquele me suscitou, (a)parecem irremediavelmente interligados não só na já referida medida em que abordam a mesma questão, como também pelo facto de essa abordagem ser em tudo similar. Se não vejamos, a monotonia aparece em ambos os escritos como um cansaço que, todavia, não é representante do esgotamento total mas sim de um "meio-cansaço" que impele por conseguinte à sua própria superação. A ideia de derrota não existe em nenhum dos dois textos, o que existe, direi, é uma "quase-derrota". Porém, também a vitória não é possível. E a monotonia impera por isso mesmo, não pelo facto de triunfar ou ser derrotado, mas por os sujeitos estarem definitivamente submetidos a uma irremediável e mediana estagnação nas suas vidas.
No sentido de emitir uma valoração positiva, afirmaria que ambos os textos supramultireferidos pretendem ser lidos enquanto dormimos na reconhecida monotonia que as suas palavras trazem, ou então pretendem habitar cada um dos nossos simples e despropositados gestos quotidianos.

Monotone

antes de saíres para o trabalho, arrumas à pressa o dia anterior
para debaixo da cama.
guardas o coração ainda adormecido bem dentro do teu corpo
e esqueces essa canção que já não passa na rádio
mas que vive secretamente dentro de ti.
fechas a porta à chave com duas voltas e sais.

os teus passos na escada fria soam ligeiros e apagam-se,
perde-se o rasto, easy listening,
guardas tudo para ti como um ex-dj...
assim partes, quase a correr.

parada junto à passadeira, protegida num gesto ledo
fixas o olhar na sombra dos carros que passam.
esperas pelo sábado,
pelo feriado e as suas pontes,
pelas férias para ouvires as tuas canções.
sentes-te longe, silenciosa de luz.


poema de João Miguel Queirós,
"poetas sem qualidades"
Averno

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Amor de Clarice Lispector

"Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro..." (Clarice Lispector)

O objectivo de Clarice, nas suas obras, é o de atingir os campos mais profundos da mente das personagens para assim sondar complexos mecanismos psicológicos. È essa procura que determina as características especificas do seu estilo.
Este texto, “Amor”, mostra a relação instável que a mulher brasileira mantém para com as exigências da sociedade patriacal a que está subjugada. Mostra que a rotina e a estabilidade emocional, que estão na base da identidade feminina, são uma máscara que prende a mulher a um quotidiano impregnado de simbologias masculinas.
A personagem principal, Ana, é mãe, esposa, mulher. Dona-de-casa que vive para agradar aos outros, cuidando dos filhos, da lida da casa, das compras…, esquecendo-se por completo de si mesma. Desenraizada do mundo estável em que vive, tem uma revelação quando, ao vir das suas compras habituais e sentada num autocarro, “olhou para o homem parado no ponto (…) era um cego”. Ana fica num estado de intranquilidade e inquietação. Depois, de reflexão e revitalização. Algo em Ana mudara…
Esta obra alerta-nos de certa maneira para o nosso comportamento automatizado, em que nos habituamos de tal maneira à presença do mundo que deixamos de lhe prestar a devida atenção. Esta habituação é apenas quebrada com a arte. È esta que permite ver a beleza “natural” dos objectos e das coisas. Neste sentido, a arte existe para contradizer a tendência automatizadora do ser humano: “it exists to make one feel things, to make the stone stony. The purpose of art is to impart the sensation of things as they are perceived and not as they are known” (Shklovsky).

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

O dicionário de Uribe - as letras vão ao circo

A primeira análise que o trabalho de Ana Maria Uribe me suscitou, foi uma perspectiva histórica, de natural desenvolvimento da comunicação escrita. Cada época e cada forma de texto particular (inicialmente religiosa, poética e dramática) detêm determinadas características gráficas e figurativas, que se perderam sobretudo no período de hegemonia do romance – muitas vezes confundido com literatura – e com os burocráticos tratados universitários.
Se muita da literatura contemporânea ignorava, em geral, estes aspectos, não nos esqueçamos da escrita anterior ao códice: a aliteração na poesia clássica, quer egípcia, quer grega e romana, que usou a fonética e uma multidão de diálogos com o sub-texto; a mistura de altos-relevos, pinturas, ilustração para livros, iluminuras na Idade Média – por exemplo o uso de letras em grande e destacado para iniciar um texto para o épico, ou o pequenino e trabalhado para o lírico; e na escrita religiosa, o código do sagrado – a simbologia – nos textos antigos, no Corão, nos escritos judaicos, carregados de poder mágico da letra, capaz de por si só evocar. Existem várias formas caleidoscópicas e complexas de escrever um texto.
Na década de vinte, generalizam-se exemplos de poesia do tipo gráfico, como
L
...Le n
... ... Ta
... ... ... ... M en
... ... ... ... ... ... T e ...
um exemplo básico, mas que expressa algo que hoje nos é muito familiar.
Se a imaginação é o essencial, a tecnologia abre-lhe muitas portas, nomeadamente, falando nós da era digital e das repercussões que esta teve e tem na comunicação discursiva – som e movimento. Aquilo que a evolução para o códice esqueceu, é-nos devolvido e desenvolvido na sua próxima etapa evolutiva – a edição digital. De tal é exemplo o “Anipoema” [Ani(mação)poema] de Ana Maria Uribe, onde o conteúdo é explícito (tive agora alguém a quem mostrei um “anipoema” e sem nada mais me disse “é um trapézio”). Foi na forma com que Uribe se preocupou, mostrando-nos que não só as palavras não são apenas palavras, como as letras podem não ser apenas letras! Associando-as ao som e movimento, algo que só a tecnologia digital lhe permite, e à cor, conseguiu representar um circo inteiro não sem poucas, mas sem nenhuma palavra. E por escrito.
Um exemplo curto, mas sucinto. Curto pois o potencial criativo desta tecnologia está aquém quando pensamos o que fariam os dadaístas se a ela tivessem acesso. Temos outros exemplos de interacção, de combinações infinitas de sentido: na música, sobretudo electrónica, que une todos os sons que o artista desejar, na pintura e escultura, com a utilização de todo o tipo de materiais, incluindo perecíveis, e mesmo no teatro, com os Happenings norte-americanos.
Sente-se a necessidade de os nossos actuais escritores puxarem um pouco mais pela imaginação e navegarem, mergulharem em profundidade, nos recursos a que actualmente têm acesso.

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

"Los Animales" de Ana Maria Uribe

O meio digital da internet é um meio de comunicação sobrecarregado de ruído: temos a profusão de publicidade indesejada, os pop-ups, e os próprios hábitos socializados de navegação. Estes fazem da navegação na internet uma actividade habitualmente feita com uma atenção repartilhada entre vários assuntos ou acontecimentos internáuticos e também com tudo o que acontece do lado de cá do ecran. Como era da superabundância da informação, e também da imagem, um dos resultados palpáveis é uma saturação do campo semântico.

No (ani)poema de Ana Maria Uribe «El circo: anipoema por entregas», e centrando-me na "entrega" «Los Animales», é patente essa saturação e o seu aproveitamento criativo. As letras que dançam não podem deixar de ser interpretadas como letras portadoras de um sentido. O nosso cérebro não permite esse distanciamento devido ao longo treino que temos de associar à representação gramatical uma imagem mental ou um conceito. Assim o texto de Uribe gera uma confusão semiótica entre o sentido lexical das letras e todas as conotações que são introduzidas ao deformá-las e atribuir-lhes um valor estético. As letras são como que antropomorfizadas (neste caso, moldadas à imagem não do homem mas do animal): a sua distorção vai evocar membros ou outras partes do corpo como o pescoço ou a cabeça. A utilização das cores e o movimento vão fazer evocações sensoriais que são complementadas pelo som e que dotam o texto de um prazer humorístico que reside na interpolação dos diversos níveis de discurso.

Como exemplo de literatura digital, parece-me ser um texto que joga com a saturação de símbolos a todos os níveis do sensorial de que falava no princípio e que é característica da revolução comunicativa que caracteriza a era da informação, hiperbolizando-a ao nível da caricatura. Trata-se de uma amplificação lúdica como era o uso medieval do grotesco pelos jograis e saltimbancos. Daí que a imagem geral das "entregas" seja o circo, havendo um sentido de troça nas relações entre o que é e o que devia ser, o normal e o anómalo. Esta penso ser uma das leituras possíveis.

sábado, fevereiro 17, 2007

Dois quadrados

El Lissitzky (1890-1941), História suprematista de dois quadrados em seis construções, pag. 5 (1922).

Regras de participação em «DigLitMedia»

A experiência de 2006 mostrou o valor deste exercício colectivo de escrita como instrumento de aprendizagem e de conhecimento. A participação no blogue é um elemento essencial desta disciplina: 50% da avaliação será feita a partir das contribuições para o blogue e outros 50% resultarão de um trabalho criativo final. Quem não dispuser de acesso pessoal à internet deve usar os diferentes pontos de acesso das bibliotecas dos Institutos ou da Sala de Informática da Faculdade (2º piso).

Regras para a participação no blogue:
1º) cada participante deve publicar pelo menos 1 texto por semana;
2º) os textos serão uma extensão do trabalho da aula: a)tentando responder a uma questão específica levantada; b) reflectindo sobre uma obra observada ou lida; e c) comentando outros textos publicados no blogue.
3º) todos os participantes devem registar-se com nome próprio, de forma a que a autoria de todas as entradas seja facilmente identificável.

Contos

Joan Brossa (1919-1998), «Contes» (1986).

Literatura e Media na Era Digital (2ª edição)

DigLitMedia é um blogue associado à disciplina Literatura e Media na Era Digital. Constitui um fórum de escrita que alarga à esfera pública electrónica a reflexão levada a cabo nas aulas. Se conseguir o nível de participação e de reflexão que se imagina, poderá ser uma espécie de diário dos pensamentos em construção e, não menos importante, uma amostragem de criações digitais em linha. Seis temas circunscrevem a escrita deste colectivo de escrita:

TEMA 1: O que é um medium?;
TEMA 2: Códices e computadores;
TEMA 3: Práticas artísticas inter-media;
TEMA 4: Máquinas que escrevem;
TEMA 5: Poesia digital;
TEMA 6: Ficção digital.

Céu e Água

M.C. Escher (1898-1972), Céu e Água I (1938).