sábado, fevereiro 24, 2007

Amor - Clarice Lispector


Sofro, Lídia, do medo do destino.
A leve pedra que um momento ergue
As lisas rodas do meu carro, aterra
Meu coração

Tudo quanto me ameace de mudar-me
Para melhor que seja, odeio e fujo.
Deixem-me os deuses minha vida sempre
Sem renovar

Meus dias, mas que um passe e outro passe
Ficando eu sempre quase o mesmo, indo
Para a velhice como um dia entra
No anoitecer

Ricardo Reis


Naquela que é a hora perigosa do dia - sem os filhos para cuidar, nem a casa para limpar - Ana tem medo.Medo que a rotina, que tão cuidadosamente criou ,se desfaça.Sozinha e com a casa impecavelmente limpa não tem como se esconder, já que nenhuma das máscaras serve: nem a de mãe, nem a de esposa, nem a de dona de casa.Desprotegida, mais exposta a si própria do que pode permitir, Ana sai.

Tudo quanto me ameace de mudar-me
Para melhor que seja, odeio e fujo

Foge.Sai para ir ás compras, no seu esforço diário de passar aquela hora sem perturbações.Mas desta vez, todo o tempo que Ana passou a construir a sua felicidade serena e controlada , desta vez todo esse tempo não serve de nada.Olhando pela janela do eléctrico vê o cego.É um cego que mastiga uma chiclete.As compras caiem no chão.Os ovos partem-se.Alguma coisa dentro de Ana parte-se também."Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse" , mas afinal explodiu.

Sofro, Lídia, do medo do destino

Sem querer, acaba sentada num banco do Jardim Botânico.Aquele mundo tão diferente do seu, tão cheio, desperta os seus sentidos e os seus pensamentos. Há muito que isso não acontecia.Observa a natureza como se nunca o tivesse feito antes: as frutas, as flores, os animais e a terra aparecem aos seus olhos de uma maneira nova - "era fascinante, e ela sentia nojo".

A leve pedra que um momento ergue
As lisas rodas do meu carro, aterra
Meu coração.

Os seus filhos esperam-na em casa e o jantar de família também.Está tudo igual, como ela tinha deixado: limpo e arrumado.

Deixem-me os deuses minha vida sempre
Sem renovar

Meus dias, mas que um passe e outro passe
Ficando eu sempre quase o mesmo

Mas Ana não é a mesma, a casa e a família como antes, mas não ela.O cego e o Jardim Botânico corromperam a estabilidade que até aí a mantinha longe dos males do mundo, das aflições e inquietações.Agora Ana tinha descoberto uma nova forma de amor: a capacidade estar atenta ao mundo e ao que de bom ou mau existe nele.