sexta-feira, março 31, 2006

As notas coloridas de Debussy

Em "Claire de Lune", o nosso olhar é surpreendido com uma pauta colorida. As convenções são quebradas e a nossa imaginação vai avançando à medida que as notas coloridas vão surgindo. A luz acende e apaga-se a cada nota como se fosse a palheta de metal duma caixinha de música que desliza. Assim, notas dispersas, mas por nós ordenadas, compõem linhas condutoras de cor, som, imagem, ou das fantásticas variações submetidas em qualquer tipo de texto, mesmo do texto musical.

Américo Rodrigues

Os textos "Zip Fluxus","E-qui-li-brrrr-iô" e "Carne" são geniais!!!A principal ligação entre eles é o som.
Os sons dos movimentos do fecho em "Zip Fluxus", juntamente com uma respiração ofegante do próprio Américo Rodrigues, levam-nos a pensar em várias sensações. Sensações de medo, sensualidade, sexualidade, paixão e emoção.
Em "E-qui-li-brrr-iô" há um jogo com as silabas que compõem a palavra e com os sons que se podem produzir com essas silabas. Há um ponto de equilibrio entre a escrita e a linguagem bem como com o som e a palavra.
Com "Carne", poema que é feito com beijos, beijocas e beijinhos, há o trabalho com o som do beijo, que faz com que pareça um instrumento musical. Na minha opinião o beijo é o toque de carne com carne, por isso é lógico o poema ter esse nome!
O som assume um papel fundamental em Escatologia.

quinta-feira, março 30, 2006

Escatologia em Américo Rodrigues

Zip Fluxus, E-qui-li-brrrrr-iô, Carne. Perante estes três trabalhos o que será que o autor nos quer contar? O que o fez fazer/mover para nos apresentar estas obras quase sem sentido para um ouvido comum? Em primeiro tentemos uma breve abordagem do conjunto: no Zip Fluxus é notável a presença da respiração alternada entre um possível mundo sexual e (ainda talvez) outro onírico, acompanhada esta pelo abrir e fechar de um zip que também ele é alternado entre a serenidade do prazer e a velocidade louca de que ele, por ventura, poderá acabar a qualquer momento. E-qui-li-brrrrr-iô dá-nos a percepção nítida de uma avalanche de sons que uma única vogal pode suportar. Aqui é revelado o spectrum possível que as vogais e consoantes podem adquirir para além do seu significado na palavra contido, é deste modo feito uma busca exaustiva das possíveis melodias que, sem dúvida, des-mancham a palavra originária, remodelando-a para que o próprio leitor/a não fique preso à insignificância dos sons e não seja levado pela onda do simples ouvir sem pensar. O que nos traz de novo a Carne? Ora, neste trabalho é explorado igualmente de forma espectral o desenvolvimento do som que é produzido e (dis)torcido do original, mas neste caso o simples som de um beijo é levado ao extremo, chegando ao ponto de não termos a possibilidade auditiva de reconhecer o som produzido como o som de um beijo-carne, mas como um conjunto de sonoridades além beijo, migradas estas de um beijo original.

Com tudo isto resta-nos agora – e é aqui o ponto – examinar o que o autor nos quer ensinar com as estas três produções. Algumas perspectivas podem ser ampliadas: o autor mergulha nos sentidos e sons das palavras, passeando bem pelo fundo e dando-nos todo o spectrum de que elas poderão significar no seu contexto primordial. Ele obriga-nos a parar para pensar, parar e fluir no ritmo do além-som original, parar e sentir que um simples som pode alterar toda uma estrutura frásica. Aqui o jogo de combinações e exploração dos sons é realmente algo que nos perturba, pois ele retira-nos do nosso hábito de só ouvir os sons e associá-los imediatamente às palavras e às ideias como que de um modo automático, esquecendo-nos nós de que as combinações de sons são imensas, muito para além da nossa capacidade de compreensão e audição.

a pintura da literatura

O grupo fauvista tentou captar a atenção para a materialidade dos meios utilizados na pintura. Os poetas concretos usam(vam) a palavra como um objecto plástico em si mesmo.
Até ao séc. XIX todas as técnicas de representação pictórica procuravam criar uma ilusão que permitisse confundir a obra com o objecto representado.
Com modernismo surge a consciência de que aquilo que a arte faz é uma representação do mundo, mas que reflecte sobre si mesma.
Os artistas tornam-se mais conscientes do meio enquanto matéria, de características que são determinadas pela sua materialidade e não procuram esconder essa mediação.
Do ponto de vista da cor, esta é usada de forma expressiva e não como um simulacro daquilo que se quer representar. Há uma utilização da cor no sentido da libertar, da emancipar. A matéria é susceptível de se tornar independente da percepção do real.
A perspectiva tinha esse objectivo, de criar um ponto de vista fixo, que se parecesse com o ponto de vista de quem estivesse a olhar para o que está a ser representado: “a tela era a janela para o mundo”.
O que os modernistas fizeram foi multiplicar, distorcer as perspectivas. A ilusão da terceira dimensão era muitas das vezes desfeita ou sugerida por manchas de cor. A pincelada sugere-nos o movimento do pintor, a sua tensão ou delicadeza, e aliada às diferentes manchas de cor acrescenta algo mais à nossa percepção. As manchas de cor criam ambientes dinâmicos, não estáticos. Como se as manchas de cor se ligassem directamente ao estado emocional daquele ser que está perante nós, um ser que tem várias temperaturas.

Porquê esta relação com a poesia concreta? Porque se processa essa experimentação na linguagem através da sua estrutura de som e grafismo, libertando-a de uma leitura convencional. É olhar para a palavra como um objecto plástico em si mesmo, para lá das convenções sintácticas.

E - qui - li - brrrrrrr - iô

A ideia do autor é encontrar o ponto de equilíbrio. Para alcançar algo, passamos por experiências várias, nesta busca pelo equilíbrio, essas experiências poderão ser representadas pela forma muito diversificada como ele trabalha a sonoridade da palavra equilíbrio.
O autor começa por pronunciar lentamente "equilíbrio" - por que não interpretarmos isto como um momento calmo em que tenta entender que tipo de equilíbrio busca realmente? Ou o que significa equilíbrio? Depois começa a aumentar a voz, mistura sílabas, di-las de forma desordenada e num ritmo quase frenético. Parece também que gagueja...
Depois ouve-se o "brrrr...", prolongado e forte - lembrou-me de imediato um motor. No entanto é na letra I que situa mais intensivamente a sua linguagem. Fala os "iiiii..." de formas tão diferentes, que ouvimos vários sons da letra I, como se o I fosse uma cor a que atribuíssemos várias tonalidades. Umas vezes lembra-me um riso histérico, outras um riso irónico, etc. Também o som "ÔÔÔÔÔ..." - o autor brinca com todos estes sons. Embora não seja esse o objectivo do autor, mas sabendo que somos nós, público, que interpretamos a obra, atribuo também uma ideia infantil a todos estes sons - associo aos sons, sem sentido, que muitas pessoas fazem quando em contacto com um bebé, como que a tentar comunicar com ele... fez-me lembrar esse tipo de brincadeira, principalmente nas partes em que o autor fala mais rápido e soam apenas sons imperceptíveis. E ainda, num contexto infantil, o "ôôôô.." assemelha-se com a "voz" do famoso pai natal ...
O autor termina, mais uma vez, com a letra I, mas pausadamente, talvez cansado duma busca, quem sabe infrutífera, desse equilíbrio tão desejado...

quarta-feira, março 29, 2006

Concreta e digital

A poesia concreta antecipou a poesia digital. Era inevitável que autores como Augusto de Campo utilizassem toda a generosidade que os meios digitais nos oferecem.
Existem duas propriedades inerentes ao texto concreto e ao texto digital: a dimensão espacial e a dimensão icónica e imagética.O autor concreto ao retirar a palavra de uma estrutura linear da frase, liberta-a. A palavra tem agora início e fim em si mesma. Como nos diz Bartolomé Ferrando a palavra torna-se um "organismo vivo”.
O texto electrónico ao sobrepor som e sentido(s) permite gerar “poderosos mecanismos de associação”, o que cria uma enorme “tensão entre iconicidade e abstracção”2
O texto concreto decompõe a frase e a palavra na sua concretude de escrita e de som, abre caminho para uma “poética da literacia”2 centrada na mediação entre a escrita e a leitura. Ao leitor é-lhe pedido que complete o percurso da leitura aplicando a sua capacidade hermenêutica (interpretação) e semiótica (organização de signos). O leitor vê-se obrigado a parar, a ler e reler, a sentir a respiração de cada palavra e a disponibilizar-se para o que ela lhe poderá dizer.
1 "El Arte Intermédia"
2 Prof. Portela

O significado em movimento.

A escolha de Jim Andrews da palavra meaning, no seu trabalho Enigma n, não é uma escolha arbitrária, leva-nos a pensar nas palavras e o seu significado, ou significados, em constante movimento. As palavras e a própria vida em constante movimento. O movimento não é linear: pelo contrário, vem em todas as formas, tamanhos e medidas. Podemos pensar o significado da vida, do ser humano e as relações entre estes. A linguagem não é estática mas em constante devir. Não é uma transformação linear, pois existem palavras que caiem em desuso para depois entrarem novamente na língua para referir outras coisas ou experiências.
Jim Andrews conseguiu transmitir esta ideia no seu trabalho Enigma n.

Uma visão de "Escrituras Superpuestas"

Além de se tratar duma obra com uma apresentação gráfica diferente não só pela escrita sobreposta mas também pelos materiais utilizados "Escrituras Superpuestas" apela também à nossa concentração para a compreensão da mensagem transmitida que remete normalmente para a própria representação da obra ou para aspectos relacionados com a palavra ou o som.

A Intertextualidade da Rã de Bashô

A poesia, que agora tende a migrar dos livros para o universo electrónico-digital, adaptando-se ao/ampliando-se neste novo meio, não deixa de conservar qualquer coisa que lembra a poesia verbal, visual, ou sonora existentes. Ou seja, a intertextualidade - que significa interacção entre textos, diálogo entre eles – surge rearticulada no hipertexto. Senão, vejamos o seguinte exemplo:














O velho tanque -
Uma rã mergulha,
barulho de água.¹

Este é um dos poemas mais conhecidos de Bashô Matsuo (1644–1694), considerado o primeiro e maior poeta japonês de haiku. Basicamente, o haiku é uma forma poética que, quanto à forma, tem três versos curtos (sem rima) de respectivamente 5, 7 e 5 sílabas métricas japonesas e, quanto ao conteúdo, expressa uma percepção da natureza. Ao lermos o poema «Rã de Bashô» de Augusto de Campos, incluído no seu trabalho, curiosamente chamado de Intraduções, somos remetidos rapidamente para o haiku acima transcrito.

rã de bashô ²













Mesmo que não se consiga fazer mais nenhum outro tipo de analogia entre os dois textos, é incontornável o facto de o título da composição de Augusto Campos ser, não só autoreferencial – porque apresenta a palavra rã, que depois parece “mergulhar” no piscar feito pelos versos – mas também referêncial, ao incluir o nome do poeta Bashô Matsuo.
Podemos então dizer que, em conjunto com a tendência para a autoreferencialidade, o hipertexto também se constrói absorvendo e transformando outros textos, pois tal como nos recorda Julia Kristeva: “tout text est absorption et transformation d’un autre text”³.

¹Traduzido por Paulo Franchetti e disponível em http://www.prof2000.pt/users/secjeste/mmanuelr/hbasho.htm
² Disponível em http://www2.uol.com.br/augustodecampos/poemas.htm
³Kristeva, J., Sèméiotikè: recherches pour une sémanalyse, Paris: Seuil, 1969

Forma vs. Conceito

A literatura digital e as suas novas possibilidades formais, sobretudo essas, permitem-nos visualizar, materializar, o que já se questionava ou teorizava anteriormente. Forma ou Conceito? Será possível separar?

De facto a forma sempre foi importante para a poesia, quer seja pela sua composição e apresentação gráfica, quer pela sua musicalidade inerente, mas com a poesia concreta novas questões se levantaram. Será a forma em si mesma portadora de sentido e criadora de contextos? No meu ponto vista não!

A forma de um poema pode, no máximo, tornar-se quase tão importante como o sentido do que se escreve, mas nunca o significante será equivalente ao significado. Nunca o significante ganhará significado per si! Senão vejamos: os grafemas /a/, /m/, /o/, /r/ não serão mais do que uma representação gráfica da nossa linguagem; e mesmo a sua junção na palavra amor só ganha significado porque assim foi convencionado. De facto, amor poderia significar o que quiséssemos: casa, carro, ódio, peixe, etc. Mas foi o conceito a que foi associada a palavra amor que lhe deu o importante significado que move a nossa sociedade!

No entanto, é inegável a importância da forma para a poesia. Mais, na poesia concreta e na poesia digital, é fundamental! Mas é fundamental como um elemento catalisador de novas leituras e novas interpretações que anteriormente não seriam possíveis. Com o uso da forma como ferramenta poética, a própria leitura se torna interpretativa desde a sua génese. O acto de ler deixa de ser uma mera interpretação de um texto fixo, inalterável e passa a ser um acto dinâmico, criativo até um certo limite, e altamente gratificante.

Apesar de tudo isto, o autor continua a ser o autor e o leitor o leitor. Para mim, as diversas interpretações formais possíveis de cada poema não passam disso: interpretações! Nunca serão novas criações. Porque foi o autor que possibilitou essas interpretações pela composição formal que escolheu condicionando assim as leituras.

Portanto... 1-0 para o Conceito... Mas foi disputado...

A leitura tem saídas...

Passando em revista alguns clips-poemas de Augusto de Campos, sinto-me tentado a dizer que a leitura não tem saída; a leitura tem saídas. Em "Sem Saída", Augusto de Campos sugere-nos de facto uma leitura de certa maneira fechada na semântica e na sua limitação física. Mas o que será de facto uma obra de arte, o que será aquilo que admiramos? Umberto Eco, num pequeno livro intitulado (se não estou em erro) "Porque devemos ler os clássicos", defende que uma obra de arte terá obrigatoriamente de conter em si a propriedade de plurissignificação. Assim, considerando qualquer tipo de escrita ou mesmo qualquer realização artística como uma obra de arte, estamos a admitir a abertura de significado. Esta abertura, no meu ver, vai concretizar-se em várias saídas, várias leituras, que podem ser pessoais, impessoais, do ponto de vista do autor, do ponto de vista do crítico, etc... E porque a abertura implica saída, várias aberturas (plurissignificação) implicam várias saídas. E sim, a leitura tem saídas...

terça-feira, março 28, 2006

O livro à distância de um clic


A relação entre o códice e o computador.

Com o advento de novas tecnologias era inevitável que houvesse um choque entre o moderno e o tradicional. Esse choque pode no entanto ser proveitoso para ambas as partes. Senão vejamos o caso do códice como o conhecemos desde o séc.III. Com a transposição de obras que conhecíamos tradicionalmente em papel para o meio digital passamos e ter disponível em qualquer lugar e a qualquer hora (desde que haja um computador por perto claro) qualquer obra de qualquer carácter. Esta possibilidade não deixa de ser fascinante e deveras democrática, tornando real o sonho racionalista da criação de uma biblioteca universal. O texto já não pesa, não tem dimensão física pelo que não se deteriora e pode a qualquer momento ser actualizado. Mas não é só na transposição para o meio digital que o livro fica a ganhar. Com o meio digital assistimos ao nascimento de novos tipos de literatura que até agora apenas podiam ser sonhadas e nunca postos em prática.

O texto já não é um estranho para o leitor. O leitor comanda a leitura e com isso comanda até por vezes a criação do próprio texto. Não se limita a ler e folhear, lê, cria, percorre caminhos, interpreta e quem sabe até sente agora mais do que antes o que o autor nos transmite.

Será que caminhamos para um mundo em que o livro em papel como o conhecemos está perto do fim? As vendas de livros nos últimos tempos parecem apontar o contrário. No entanto será inevitável que num futuro mais ou menos próximo por questões práticas se use cada vez mais o suporte digital. Em breve todos iremos ter Pocket Pc’s, PDA’s etc. e o papel ficará eventualmente para trás na corrida para o progresso. Enquanto noutros campos gosto de acompanhar as mudanças, confesso que em relação aos livros as luzes do progresso ainda me magoam um pouco a vista.

sábado, março 25, 2006

"Escrituras Superpuestas"

Estes pequenos textos desafiam-nos, pois não têm uma leitura fácil e comum. Estas "Escrituras Superpuestas" são palavras sobrepostas que no seu conjunto formam frases que cada um de nós pode interpretar de formas muito diferentes.
O tipo de letra que o autor usou faz lembrar tinta a escorrer, ou mesmo, gotas de sangue a escorrer, tal como ele fala num dos textos: "Sangre aérea arterias incolores sobre un libro de páginas de luz". Fazendo uma analogia com o nosso corpo, podemos imaginar estas artérias como sendo as letras, que formam as palavras indispensáveis e que permitem a existência de um livro, tal como as artérias sanguíneas permitem a existência do ser humano.

Poema Bomba - Augusto de Campos

Em termos visuais, a cor veremelha do fundo, sendo um tom forte, chama de imediato a atenção, podendo até ser associada à cor alaranjada do fogo, se tivermos em conta uma sequência Bomba - Explosão - Fogo/ incêndio. A forma como as letras se movem , se dispersam, imitam os pedaços de uma explosão que se espalham em várias direcções. A nível sonoro, o barulho é confuso, ruidoso, ensurdecedor, tal qual uma bomba, e acaba, de repente, com "BOMBA" pronunciado lentamente - transmiteme-me a ideia de uma bomba, uma explosão e o silêncio que se instala a seguir, quando tudo termina.

sexta-feira, março 24, 2006

ler texto vs ler hipertexto

Ler um simples texto impresso pressupõe interpretação e um "dar sentido" ao texto, de acordo com diversas variantes, de cariz intelectual. O livro é visto como uma companhia, uma base de pesquisa, uma fonte de conhecimentos passíveis de serem explorados, usados e reorganizados, interpretados (e por vezes sobreinterpretados). O hipertexto, para além de ser lido e relido de várias formas, dá ao leitor uma ideia de supremacia literária, já que pode não só ser lido para diversos fins, como pode ser manipulado de uma forma espantosa.

quinta-feira, março 23, 2006

A leitura tem saída?


Qual a especificidade da leitura em ambiente hipertextual? Esta pergunta pressupõe pelo menos alguma espécie de resposta prévia sobre o acto de leitura em geral. Os textos concretos são objectos relevantes para ligar a resposta às duas perguntas (o que é ler? e o que é ler hipertexto?), justamente porque muitos textos concretos são exercícios de leitura. Isto é, são textos que se oferecem à leitura com a intenção de fazer o/a leitor/a reparar nos seus actos de leitura e tornar conscientes os processos envolvidos na leitura. Desde o processo de decifrar a letra ao processo de formar sílabas e palavras: pede-se aos/às leitores/as que desautomatizem o processo e que criem ou preencham os espaços necessários para estabelecer as relações entre os sinais gráficos que chamamos escrita. Não se trata apenas de soletrar, mas de reletrar, isto é, de percorrer um conjunto de caminhos possíveis entre os signos.

Talvez seja necessário não confundir a leitura de textos constelados, isto é, de textos que oferecem várias sequências ou percursos possíveis (como elementos da sua estrutura de composição) com a ideia de liberdade de interpretação. A liberdade de interpretação é inerente ao acto de leitura: ela decorre da natureza da linguagem e dos signos, e da interacção que se estabelece entre um dispositivo textual e um/a leitor/a. Podemos constranger a liberdade de interpretação através de códigos ou de terminologias, mas não se pode (felizmente) eliminá-la. O/A leitor/a é sempre livre. A diferença específica que alguns textos combinatórios e intermediáticos introduzem é a seguinte: o/a leitor/a tem de tomar decisões semióticas, isto é, decisões sobre a organização dos signos, e não apenas decisões hermenêuticas, isto é, decisões sobre o significado de uma organização textual inteiramente pré-dada. Num sentido hermenêutico, a leitura é interactiva, na medida em que os signos fazem sentido na relação interpretativa específica que o/a leitor/a estabelece com eles.

Quando se fala em interactividade no contexto digital, há pelo menos dois sentidos a distinguir:
1) num sentido técnico, o computador é interactivo porque responde em tempo real às instruções que o utilizador lhe dá por meio do teclado e do rato e das operações que os programas desencadeiam nos circuitos lógicos da máquina;
2) num sentido semiótico, a obra ou texto é interactivo se as suas propriedades textuais materiais não estiverem inteiramente determinadas sem a intervenção do/a leitor/a.
Repare-se que, neste segundo caso, não é uma questão de interpretação (já que a interpretação, por definição, nunca está determinada sem a intervenção do/a leitor/a), mas sim uma questão de realização ou actualização de um dispositivo sígnico que existe como feixe de possibilidades alternativas. O leitor age gerando parte do texto que lê.

Dir-me-ão: mas as possibilidades de gerar combinações, por muitas ou por muito aleatórias que sejam, já estavam, de algum modo, contidas no algoritmo ou na regra que gera o texto, automaticamente ou com a intervenção do/a leitor/a. Sim, é verdade. Dir-me-ão: muitas das realizações ou actualizações possíveis nem sequer são interessantes de um ponto de vista semiótico ou hermenêutico. Sim, é verdade. Por outro lado, também é verdade que algumas das possibilidades são interessantes e que este tipo de dispositivo ou motor textual alarga o sentido da noção de "obra aberta".

Augusto de Campos

Os poemas "poema-bomba", "greve" e "o pulsar" são poemas muito interessantes de Augusto de Campos. Nestes poemas, e assim como em todos os poemas de Augusto de Campos, há um jogo de palavras e um brincar de cores e de sons.
Os poemas pelo facto de serem digitais tornam-os muito mais atractivos à leitura. Se o suporte de escrita fosse em papel essa leitura tornava-se muito mais aborrecida.
O meu poema preferido é "o pulsar" porque tem as palavras incompletas mas que tem um sentido se as completarmos. Se mudarmos as letras das palavras damos-lhe outro significado.
Com Augusto de Campos aprendemos a gostar de poesia com a ajuda das cores e dos sons!!!

quarta-feira, março 22, 2006

"Loch Ness Monster's Song"

"Loch Ness Monster's Song" com a sua representação original e aparentemente incompreensível leva-nos às profundezas do lago de Loch Ness onde entramos em contacto com o seu mítico habitante, o monstro que lá habita, ouvindo o seu lamento, fúria e espanto em relação ao mundo acima das profundezas do lago, esta é apenas uma das muitas leituras possíveis deste poema que explora o imaginário de cada leitor.

segunda-feira, março 20, 2006

Ainda Augusto de Campos...

Por exemplo, no poema Eis os Amantes, este autor apresenta um conjunto de características que permitem uma interpretação que vai muito para além da fonética. O facto de estar construído de uma forma simétrica, de ter duas cores e de várias palavras se fundirem numa só, reforçado pelo título - que nestas obras se revela fundamental à compreensão - acentua a ideia do acto reprodutivo, do amor, da união dos corpos dos amantes, ideias que também preenchem todo o campo semântico. São-nos inclusivé permitidos múltiplos percursos de leitura, pelo que a interacção poema/leitor atinge o seu auge na Poesia Concreta.

Augusto de Campos - Tensão (1956)

Tensão com ou sem som? Neste poema de Augusto de Campos podemos admirar a forma como é usada a poesia concreta, em que a linguagem é transformada e demonstrada na sua concretude de som/fonema. Numa primeira leitura, é fácil o despiste e a não captação da significação/intenção do próprio autor, e isto acontece pelo modo como nos é apresentada a estrutura do poema que tem sem dúvida muitas formas de ser lido e interpretado. Anexado ao poema escrito, temos a possibilidade do acesso ao poema recitado para poderemos de facto ter uma compreensão um pouco melhor e até mesmo apercebermo-nos do grau de complexidade que poderá alcançar todo este conjunto de palavras dispostas de um modo baralhado.

sábado, março 18, 2006

O Monstro do Lago Ness

Uma sombra na água. Uma estranha ondulação. Um tronco a emergir. Uma criatura muitas vezes entrevista, mas nunca vista de facto. Ao longo dos anos, acumularam-se as lendas. O lago foi perscrutado de lés a lés. Com sonares e câmaras fotográficas. De dia e de noite. Ao cimo de água e debaixo de água. E, mesmo assim, nunca se encontrou. Todavia a criatura persiste. O poema de Edwin Morgan dá-lhe até uma voz. Mas tal como uma mancha na superfície ondulada e cinzenta da água registada numa película fotográfica, a possibilidade de interpretação depende da criação de um contexto e de um referente para a imagem ou para a linguagem. No texto do poeta escocês, essa possibilidade é construída pelo título, primeiro, e depois pela segmentação dos fragmentos sonoros e pela pontuação. À primeira audição não parecem ser interpretáveis. São simplesmente reconhecíveis como sequências de uma língua desconhecida, com as variações de timbre, altura e duração da cadeia dos sons da linguagem. Gradualmente, no entanto, vão ganhando uma referência: o poema sonoro torna-se registo onomatopaico do som do movimento de um corpo na água. Os sons da voz e os sons da água constroem esse contexto de interpretação. A voz do monstro parece mesmo espantar-se ou intrigar-se. O processo de emergir e imergir é neste caso fotografado pelos sons e pela máquina narrativa da linguagem que faz o monstro cantar a sua história.

Ana no "País das Maravilhas"

ainda o “Amor” de Clarice Lispector

Depois de alguma busca na Internet sobre o conto “O Amor” de Clarice Lispector não é difícil depararmo-nos com uma análise de leitura inter textual entre esta obra e “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carrol.

"Neste conto, Ana entra na toca do coelho, se considerarmos o texto 'Alice no País das Maravilhas; ou atravessa o espelho, se tomarmos como referencia o texto "Alice atravessa o espelho'."

São-nos então apresentados vários pontos de simetria entre as duas obras que nos permitem ver este conto por uma nova perspectiva.

Para descobrir o país das maravilhas de Ana: http://www.brazcubas.br/professores/sdamy/mubc11.html

quinta-feira, março 16, 2006

Uma leitura de "Loch Ness Monster's Song"

O que é que o "Loch Ness Monster" canta? A onomatopeia e a pontuação de Edwin Morgan deixa no ouvido como que uma sensação mista de espanto e incompreensão por parte do "Loch Ness Monster". Como se o monstro, circunscrito à opacidade do seu lago, viesse à superfície e olhasse o mundo com olhos que não os humanos. Espantado com este novo mundo, ele não o compreende, por muito mais claro e nítido que as águas de Loch Ness. E também não perde tempo em tentar compreendê-lo; rapidamente volta a mergulhar e regressa ao seu mundo, regressa à escuridão das profundezas de Loch Ness.
Uma leitura...

The monster's song

À primeira vista, o texto do monstro parece que tem uma leitura impossível, mas se ouvirmos o autor do texto, este prova-nos que a sua leitura é possível, apesar de díficil. Ninguém percebe o que lá está escrito mas pode-se tirar algumas conclusões. Isto é a prova duma leitura diferente das que estamos habituados a ver no dia-a-dia

quarta-feira, março 15, 2006

O Cego

No texto "Amor de Clarisse" a nossa protagonista, Ana, vive no seu mundo, no qual cuida dos filhos e da casa. Ana habitua-se à vida rotineira. No dia em que vê o cego, Ana fica como que espantada pelo facto de o cego mascar uma pastilha, um acto normalíssimo mas que deixou Ana inquieta. O cego quebrou aquela rotina.
Ana vivia num mundo que ela própria construiu e ao qual se habituou. A partir daquele momento, Ana acordou para outra vida e para uma outra realidade. A pergunta "Quantos anos levaria até a envelhecer de novo?" mostra a realidade da vida de Ana e mostra uma mulher que envelheceu com o tempo e com a rotina.
Ana é uma mulher que tem medo de viver um nova vida com novos hábitos...

sexta-feira, março 10, 2006

Edwin Morgan, The Loch Ness Monster's Song (1970)

Uma leitura um pouco melhar que a minha na aula...

o beijo.........a ana


Este é um quadro brilhante...susceptível de variadíssimas interpretações... é O Beijo, de Klimt. Esta simples mulher tombada pelo peso da rotina, apenas permitindo ao seu corpo aceitar a leve brisa apaziguadora do amor, pode muito bem ser a "nossa" Ana... frágil, insegura, que por fim repousa nos braços do Amor, para se voltar a sentir mulher!

William Blake, The Sick Rose

Ao combinar texto e imagem numa só obra William Blake inovou na forma de apresentar os conteúdos na sua época criando uma espécie de protótipo do que viria a ser mais tarde a nova realidade multimédia. Ao combinar os elementos de texto e imagem Blake dá ao leitor uma maior envolvência e interesse na obra. Blake fez várias versões para poemas como "The Sick Rose", dando-nos assim as diferentes visões e estados de espírito do autor no período em que as fez.

o despertar de ana

Ana, frágil, deformada pela rotina, pelas tarefas diárias, pelos filhos, de repente desperta...desperta num despertar cruel, frio, que rasga com vil dureza tudo que Ana tomara por certo, mesmo sem se aperceber...a Jovem Ana tinha-se transformado na Mãe Ana, na Esposa Ana, na Dona-de-Casa Ana...tinha-se transformado em tudo aquilo sem se aperceber...
Um grande vazio ocupava o lugar das memórias...
Ana a tudo dava...sem nada receber... Mas Ana tem um lar seguro...maduro...um refúgio onde ela se podia esconder e tornar a sentir-se mulher...a cada toque...a cada som...Ana volta a ser mulher!

Amor [de Clarice]

O texto de Clarice começa por mostrar-nos Ana na sua vida quotidiana, vulgar como qualquer outra. Mas tudo se desmorona com a aparição de um cego. A piedade que Ana sente pelo incapacitado fá-la ponderar sobre o seu mundo. Em que mundo é que ela vive? Será realmente feliz nele? E esta vontade que ela sente em sair do seu mundo, que é comparado ao Jardim Botânico, e entrar no mundo escuro da cegueira, da fome...? O mundo em que ela vive fá-la feliz, mas enojo-a.
O texto de Rui Torres representa muito bem esta nova visão do mundo que o cego revelou a Ana. Esta obra intermédia, hibrida, ajuda-nos a perceber a confusão de Ana entre os dois mundos que ela tanto receia como deseja.

quinta-feira, março 09, 2006

William Blake, The Sick Rose (1794, 1826)

Edwin Morgan, The Loch Ness Monster's Song (1970)

O enigma do sentido 2

Jim Andrews criou um ideograma animado sobre o mistério do sentido. Graças à linguística e à filosofia da linguagem do século XX, sabemos de forma razoavelmente precisa como funcionam os significantes. Saussure e os estruturalistas, por exemplo, descreveram a língua como um sistema de diferenças. O sentido desdobra-se em referente e em conceito, mas o recorte operado pela linguagem no espaço extra-linguístico e no espaço mental depende das relações que os signos estabelecem entre si e, obviamente, das interacções que os seres humanos estabelecem com o meio ambiente e social. Estas relações estão convencionadas pela convenção que a língua e os discursos constituem, mas estão sujeitas constantemente aos mecanismos turbulentos que definem a linguagem e que permitem ao sujeito construir-se dentro dela. Mesmo admitindo certos universais linguísticos como resultado evolucionário, as categorias mentais podem ser recortadas e recombinadas de múltiplas formas. A cultura e a ideologia, por exemplo, constroem associações privilegiadas entre significantes, estabilizando certos modos de referência e de significação.

Para Derrida e os pós-estruturalistas, a instabilidade das correspondências entre significante e significado é ainda maior, uma vez que a significação resulta do movimento de substituição na cadeia dos significantes. No exercício semiótico que nos é proposto por Andrews, fazer sentido é justamente parar o movimento das letras. Essa paragem pode resultar na palavra "meaning", isto é, na cadeia fonológica e grafemática que reconhecemos como palavra com o significado "significado". Mas pode também resultar numa outra combinação aleatória de sons/letras, elas próprias, aliás, variáveis em muitos dos seus parâmetros gráficos, ainda que a sua identidade não seja perturbada, a não ser nas variações de escala que as tornam, em certas configurações, quase invisíveis.

Paradoxalmente, fazer sentido parece consistir em parar o movimento do sentido, que seria a característica definidora do próprio sentido. O sentido parece ser sugerido, em parte, como uma redundância e uma tautologia: a coincidência da palavra sentido consigo mesma. Por outro lado, o "enigma n" pode ser precisamente essa capacidade de movimento, o sentido elevado à potência n, isto é, o movimento quase imparável dos significantes, que a todo o instante nos dá a possibilidade de habitarmos a casa da palavra e entrar no intervalo entre significante e significado, descobrindo e construindo aí outros sentidos. Sentidos que não coincidem com o sentido.

quarta-feira, março 08, 2006

Dois amores

Existem pelo menos duas semelhanças entre os dois textos, "Amor" de Clarice Lispector e "Amor de Clarice" de Rui Torres.
Antes de mais há poesia. E há a Ana.
O poema de Rui Torres potencia o conto de uma forma vertiginosa, dá-nos com a sua musicalidade, o seu ritmo a sensação de continuidade (de infinito). É como se entrássemos mais a fundo no estado emocional de Ana: numa Ana deformada pelas compras, no seu ventre que ganha volume, mas também a Ana que procura o conforto.
E toda ela é movimento, e toda ela dança: semeia e volta a semear, de tudo recebe e tudo dá.
Até mesmo aquilo que rodeia a sua vida: os seus filhos, o fogão, o apartamento, as cortinas…aparecem-nos num movimento rodopiante que nos conduz até à ideia de caos.
Do caos que é a vida, em que aquilo que nos parece como mais improvável (a morte) é o mais certo.
Mas depois da imagem de caos surge o lar, o seu porto seguro. O lar onde Ana pode ser mulher e “sentir a raiz firme das coisas".
Ana pertence à parte forte-frágil deste mundo. Deste porque não há outro.
E quanto ao amor do título este encontra-se agarrado às palavras que tecem este conto-poema e este poema que nasce do conto.

terça-feira, março 07, 2006

O enigma do sentido

jfontinc[i] = 1; /* The increment by which font size changes upon rethink if discombobulated. */
rd[i] = 255; /* The red dimension of a letter's color */
rdinc[i] = 1; /* The increment by which rd is increased/decreased on rethink */
gd[i] = 255; /* The green dimension of a letter's color. */
gdinc[i] = 1; /* The increment by which gd is increased/decreased on rethink */
bd[i] = 255; /* The blue dimension of a letter's color. */
bdinc[i] = 1; /* The increment by which bd is increased/decreased on rethink */
theta[i] = 0.1234; /* radian angle between (left,top)-(cx,cy) and horizontal */
thetainc[i] = 0.0524; /* radian increment theta is increased/decreased by each rethink. Speed. */
radius[i] = 100.7897; /* radius between (left,top) and (cx,cy) */
cx[i] = 8.3456; /* x component of centre of rotation */
cy[i] = 45.9876; /* y component of centre of rotation */
clockwise[i] = 1; /* direction of rotation */

Tentemos primeiro descrever a obra: 7 letras e 8 interacções sobre essas sete letras. As letras formam primeiro o título "enigma n" e, depois, quando as paramos, usando a instrução "spell" ou a instrução "0/1", formam a palavra "meaning". A sequência de interacções sobre as letras pode variar, variando também a sequência de acontecimentos na animação e a disposição final dos écrãs animados ou estáticos que resultam da acção do/a leitor/a: variação na velocidade de movimento dos caracteres; variação na trajectória dos caracteres; variação no tamanho dos caracteres; variação na cor dos caracteres; variação na tridimensionalidade e na sobreposição de planos; variação nas paragens aleatórias do movimento e variação no desenho estático da palavra"meaning". Esta obra exemplifica um dos sentidos específicos da palavra "interactivo" na literatura digital: na medida em que o texto é um motor textual, isto é, um dispositivo algorítmico para gerar textos, uma parte do resultado semiótico depende de acções do/a leitor/a sobre a materialidade digital. Quer dizer que a acção sobre o texto acrescenta à dimensão hermenêutica (interpretativa) uma dimensão semiótica (de manipulação sígnica). O que significa então ler uma obra como esta? [Acima estão algumas das linhas de código que determinam as variações textuais.]

sexta-feira, março 03, 2006

O que é capturar o mundo com uma câmara digital?

A captura de imagens/video sempre fascinou o ser humano, mesmo por pouco curioso que ele seja, dado que o nosso olhar não consegue parar o tempo e permitir a observação tempo-zero. A nossa representação das coisas faz-se em tempo real, na inevitável onda viva da mudança e a câmara digital permite-nos visualizar/manipular o tempo tal como desejamos, faz-nos sentir um pouco senhores do Tempo. No entanto, a imagem capturada nunca é igual à imagem real, ela é um duplo, uma representação. Ora, nesta imagem do anúncio da Samsung Camcorder temos a perfeita amálgama entre o duplo e a coisa em si mesma. A mulher pensa que está a capturar a borboleta quando está apenas a apanhar a imagem dela através da câmara e isto acontece dada a (alta) definição da captura que cada vez mais nos ilude para a presença do objecto real. Será isto equivalente a ter dois ou mais mundos em simultâneo?

bp Nichol, pome poem

Ao escutarmos a mensagem que Nichol nos transmite, apercebemo-nos de que ela é bastante clara, isto é, resumindo muito sinteticamente, o poema é (está em) todo o nosso corpo, é nele que se materializa. Sendo assim o poema precisa de um corpo que o crie e que o profira para que ele se torne concreto, mas será assim tão pacífico? Será que o poema não poderá ser desligado do corpo? Não poderá ser ele independente e subsistir fora de um corpo como que inscrito ou registado em algum documento? Ou ainda por outras palavras: será ele o eterno dependente do corpo? Esta reflexão torna-se ainda mais delicada se tivermos em conta de que o poema ele mesmo é singular, o que significa que várias pessoas poderão ler esse mesmo registo mas nunca com a intensidade de quem o criou; a sincronia nunca será absoluta e idêntica por muito que se possa pensar na proximidade da mesma.

Amor Cego

"Não é o amor que se representa como sendo cego; é o amor próprio."
Voltaire

O Amor de Clarisse é também o Amor de Ana ou a falta dele...
Ana fecha os olhos a um mundo que já conheceu, que experimentou, quente e sensorial. No entanto,esse mundo, com o envelhecimento a que se voluntarizou é excluido da redoma em que sistematizou a sua existência! A rotina para Ana não é apenas um facto quotidiano mas sim a essência de uma barreira que lhe arrefece e mantém estanque a vida.
Ana é cega para a vida! E se se a cegueira não é mais do que a ausência de visão podemos pensar que só alguém que se identificasse e compreendesse a situação de Ana poderia funcionar como catalisador para a emancipação sensorial que nela se realizou!
Ana vê o Cego como se de um espelho se tratasse...
Será Ana o Cego?

quinta-feira, março 02, 2006

Texto "Amor" de Clarice Lispector

O texto apresenta-nos uma mulher que se acostumou à vida rotineira que leva, sem exigir dessa vida nada de novo, nada que a surpreenda, nada que fuja ao equilibrio do seu dia-a-dia. Não era esta, provavelmnte, a vida que sonhara, mas limitou-se a aceitar o que o destino lhe reservara. No entanto, o seu sereno quotidiano é todos os dias ameaçado por um momento em que a sua vida parece prestes a quebrar - o momento do dia em que se encontra sozinha, sem nada que fazer, nem ninguém para cuidar.
Certo dia no autocarro a sua paz é ameaçada por um momento de crise em que tudo à sua volta, de repente, lhe parece estranho, assustador - de repente vê o mundo de forma diferente e questiona a forma como tem vivido no seu pequeno espaço há tanto tempo. É um momento de lucidez, se assim lhe pudermos chamar, uma visão real do mundo - o cego, a indiferença das pessoas... Ela é uma mulher fraca, que quer ser forte, e que no fundo n deseja aperceber-se da realidade que a rodeia, apenas deseja voltar ao seu "mundinho" em que tudo está em ordem e parece perfeito. No fundo sente-se bem na sua pequena rotina diária de mãe, esposa, dona de casa ...

"Amor" de Clarice Lispector

Percorremos o texto tal como Ana, perturbados pela visão do cego esquecendo o que será de facto importante: o título.
A que se refere este “amor”? Ao amor que levou Ana ao autocarro onde se senta com as compras no colo? À “vertigem de bondade” que a leva para fora do seu mundo e a desperta para uma realidade que não é a sua? Ou ao Amor que a leva de volta ao seu mundo? Não será antes este “amor” o amor por si própria quando se descobre?
Ana que vive o seu dia-a-dia para os outros como mãe e esposa, fazendo assim parte de um mundo que nunca julgou ser seu, tem na visão do cego um momento de epifania que a faz questionar a vida que leva. Abalada por esta nova visão do mundo, Ana medita e por momentos apercebe-se da banalidade daquele que conhece como sendo o seu mundo. Ana descobre-se como pessoa para além da sua realidade de mãe e esposa. Descobre o quão pequena e banal era a sua existência em que como dona de casa tudo controlava. Descobre um mundo onde não tem controlo e onde é apenas uma mera espectadora. No entanto Ana regressa a casa e à sua vida bem mais simples que todo o mundo que havia visto essa tarde, mas não mais voltaria a ser a mesma. Ana descobrira uma mulher mais bruta que havia em si e esperava agora o próximo despertar.