terça-feira, dezembro 30, 2008

99 maneiras diferentes de olhar o mesmo mundo

Os Exercícios de Estilo de Raymond Queneau demonstram de modo surpreendente que é possível (mesmo que tangencialmente) relacionar poemas japoneses, com Matemática, “helenismos”, a língua dos Pês, “francesismos”, “inglesismos” e possivelmente tudo o mais que possamos imaginar. A premissa é a mais simples possível: descrever um único acontecimento no maior número possível de maneiras.

Se há algumas descrições que são acessíveis aos leitores, outras requerem algumas ferramentas de interpretação e/ou uma pitada de imaginação (por exemplo, o texto Translação: “No Y, num horizonte de grande mozés, uma tipolitografia dos seus trinta e dois anoféles, chapuz de femeeiro com um cordial a substituir a fitobiologia, pespego comprido como se lho tivessem esticado”). No entanto, há sempre algo que se aprende em cada texto, quer a nível de algum pormenor que permita imaginar uma parte do acontecimento, ou em termos de vocabulário, ou simplesmente em relação ao modo como o autor (e os tradutores) foram capazes de reproduzir determinado universo temático/ linguístico.

Lendo vários dos textos é posssível encaixar o puzzle do acontecimento (ou conjunto de acontecimentos circunstanciais) que é retratado, como se se estivesse a recolher depoimentos de testemunhas diferentes e com dialectos distintos (em suma, habitantes de Babel). O que inicialmente parece problemático rapidamente se torna interessante e estimulante e a cada leitura aprendemos uma nova possiblidade de moldar a língua.

Finalmente, este conjunto de textos deita por terra a noção de que uma imagem vale mais do que mil palavras. Assistir ao conjunto de ocorrências descritas seria porventura muito menos interessante que ler acerca delas descritas de várias maneiras originais. Além disso, uma imagem revelaria apenas uma visão e nunca permitiria o exercício mental que este conjunto de textos produz. Podemos observar o Mundo com dois olhos mas pensá-lo em 99 linguagens diferentes consegue dar-lhe cores que o cérebro nunca conseguiria interpretar (à primeira vista).