sábado, abril 28, 2007

Chamar-lhe-ia manifesto.

Com a revolução tecnológica e os progressivamente constantes avanços que no campo da informática têm pautado presença, o processo de escrita tem vindo a sofrer alterações de base. Essas variações muito têm alterado ao longo dos tempos as “normas” e “preceitos” teóricos de escrita, forjando mudanças estilísticas que ora arrastam consigo os preceitos teóricos, ora por eles são arrastadas.
Antes de mais, independentemente de juízos de valor favoráveis ou desfavoráveis, cabe-nos, hoje, a nós, a tarefa de pensar acerca do acto de escrita e de leitura assistida por meios informáticos; cabe-nos evidenciar as suas vantagens e as suas desvantagens. Primeiramente devemos fazê-lo de um ponto de vista científico. E depois, só depois, podemos então, partindo da matéria-prima recolhida, dar forma à nossa própria teoria, conjugação mais ou menos fiel dos preceitos adquiridos e julgados.
Contudo, a nossa divagação atinge o extremo quando nos deparamos com a possibilidade da existência, num futuro mais ou menos próximo, de máquinas capazes de produzir, por si mesmas, obras de índole literária. E aqui, as opiniões dividem-se- tal como se tolera e de certo modo se compreende que dividam.
De facto, o surgimento desta possibilidade “mexe” com todas as ideias que vêm sendo tidas até aqui acerca do processo de escrita. Há ideia vigente em grande parte dos meios é ainda a de que o acto descrita emerge numa corrente denominada inspiração, puro fluxo do tantas vezes citado “estado de alma” do autor. Sobretudo confunde-se muitas vezes o papel de escritor/ poeta com o desempenho do “sujeito poético”.
O trilho que se deve seguir, antes de formular opinião e como base integrante à opinião que será formada, deve ser a via da tentativa para compreender os dois lados em divergência, a tentativa de analisar cada uma das antagónicas parcelas em estudo. Depois surgirá a opinião. E com ela o esboço de todas as ideias em que acreditamos.


  1. todo o espaço é comum. nunca nenhum homem roubará o lugar às máquinas, nunca nenhuma máquina ocupará o lugar do homem. os homens e mulheres irão sempre escrever. não tenho a menor das dúvidas quanto a tal facto. isto, até porque, hoje, a escrita pode já ser considerada essencial e interior à existência humana.

  2. do cepticismo em aceitar ou do homem que não acredita em si mesmo, e quer continuar a não acreditar. toda a escrita é humana (até a computacional). não foram os computadores quem a inventou. e é o homem quem programa os computadores.
    existirá sempre a “mão humana” por trás de cada texto produzido por uma máquina escrevente. a criação do computador deve-se ao homem. a sua evolução deve-se ao homem.
    se algum dia um computador vier a produzir de facto um texto lírico íntegro, esse texto não deixará de conter em si uma grande componente humana- isto no sentido em que foi o homem quem produziu e programou a máquina para aquela tarefa.

  3. ninguém pede aos seres humanos para deixarem de ser seres humanos. os homens e mulheres continuarão a ter sentimentos (que partilharão consigo mesmos e entre si), continuarão a escrever e a ler. ponto assente.

  4. em tudo o que fazemos estão presentes sentimentos. mas, em tudo o que não fazemos não estão presentes sentimentos. se a escrita é uma representação do que fazemos: então é uma escrita histórica ou autobiográfica, não é arte (e o que estamos a discutir é a produção artística). se a escrita é uma representação do que não fazemos: pedaço fictício dos nossos dias ou dos dias dos sujeitos que escrevemos, então esses sentimentos não são nossos, serão, sim, pelo menos em parte, sentimentos usurpados de outrem.

    porém, ainda não foi alcançado o facto que este ponto aspira alcançar. e este é dos constituintes mais importantes e indispensáveis.
    a ideia de que o escritor escreve aquilo que sente- de forma pura e simples- não faz, hoje, sentido. de facto, nunca fez. não houve foi, saliento, durante um largo interregno de tempo, a (auto)consciência e humildade para que este assumisse tal facto.
    existe uma forte componente pessoal tanto no romance como no poema, é inegável. mas é impossível- ou pelo menos é irreal- pensar que um poema é ditado por uma entidade superior ou que um romance é inteiramente escrito sobre uma inspiração vinda sabe-se lá de onde. Eça não escreveu as seiscentas páginas d’ Os Maias sob fluxo de inspiração divina (ou divinatória)! Eça não escreveu os milhares de páginas que escreveu durante toda a sua vida sob um clima místico de inspiração; os milhões de frases que produziu não foram por ele produzidas vindas directamente da sua “alma”; os milhões de milhões de palavras que a sua pena escreveu não foram arrancados de sentimentos inteiramente sentidos e pessoais- se assim fosse, nunca a sua pena teria rasurado uma única palavra, pois todas elas seriam sentidas, todas elas seriam divinamente perfeitas.

  5. a morte daquilo que nunca existiu. a inspiração não existe mais. é urgente derrotar a sua ideia. o que converge à mente do poeta no momento em que a produção de escrita se lhe impõe é, pois, um fluxo diverso, miscelânea de sentimentos conscientes e inconscientes que o levam a produzir signos linguísticos; que o obrigam à escrita. sendo que a escrita, essa impossibilidade de comunicação, reflectirá sempre preceitos básicos e gerais de ordenação e sistematização. ou como diz Lobo Antunes: a escrita não é mais que a «estruturação do delírio».

  6. a pergunta (ou leitura como base de toda a produção escrita).

    exigimos textos com sentimentos. mas, como é que nos apercebemos de que esse texto está dotado de um sentimento pessoalmente vivido pelo autor? a resposta é: somente nos poderemos aperceber (ou isso inferir) através da leitura – isto partindo do difícil pressuposto de que o escritor escreve "aquilo que sente".
    será que um texto produzido por uma máquina escrevente que nos cause um verdadeiro momento de prazeiroso fruir estético (componente emocional intrínseca) deixa de ser tido como belo para nós próprios- quando descobrimos que foi produzido por uma máquina- para passar a ser tido como pestilento lixo?

    o que é o sentimento verdadeiro de um poeta? conseguimos percebê-lo no poema colado ao papel? ou será que nunca poderemos ter acesso a ele, sendo a beleza que possivelmente podemos encontrar no seu poema uma beleza reflectida de nós mesmos, uma “revisitação” de nós mesmos nos enunciados produzidos por outrem?

    porque é que gostamos de um poema, de um romance, de uma música, de uma escultura, de um quadro, de um desenho, de uma obra arquitectónica, de um objecto de design, de uma peça de vestuário: porque é que gostamos de uma obra ou objecto artístico? é porque “nos vemos nela” ou é porque “nela vemos os outros”?


p(re)c