domingo, outubro 26, 2008

Augusto de Campos e a Poesia Concreta

Augusto de Campos é um homem à frente do seu tempo. Numa época em que se julgava que nada mais havia a fazer na literatura. Em que a inovação artística era vista como algo impossível, Agusto de Campos pensou mais longe e desconstruíu o próprio código linguístico. Os seus poemas não são apenas um objecto passivo à espera do conhecimento por parte do sujeito; têm um papel dinâmico e, diria até mesmo, um papel de desafio para quem os lê. São pedaços de literatura que requerem um exercício mental, pois a mensagem que transmitem não é de todo óbvia. A quem os lê é pedida que reflicta naquilo que pensa e interpreta. "Porque é que eu vejo isto assim?" é a questão que Augusto de Campos propõe aos seus leitores.

tensão

"tensão" é um poema com uma disposição espacial inteiramente inovadora. Augusto de Campos separou os sons de várias palavras sugerindo possíveis combinações entre eles. Sendo a totalidade dos sons graves, a tensão, que dá nome a esta obra, é facilmente perceptível quando o poema é lido em voz alta. Temos "tambem", "cansem", "contem", "cantem", "tentam", "tombem", "contam" e, obviamente, "tensão". Há ainda a possibilidade de juntar sons que formem palavras que não existem. A liberdade da Poesia Concreta é bastante visível.

coraçãocabeça

Sobre um fundo vermelho e a letras amarelas, o leitor depara-se com um conjunto de letras que vai alternando entre si, aparentemente destituídos de sentido. Contudo, Augusto de Campos cria um código de leitura que cabe ao leitor descodificar, através de um olhar atento. A mensagem codificada é "Minha cabeça começa em meu coração; meu coração não cabe em minha cabeça". Há referência à antítese entre a racionalidade e a emotividade, tradicionalmente representadas pela cabeça (cérebro) e pelo coração. No entanto, Augusto de Campos faz uma nova leitura desta dialética: o coração e a cabeça podem estar ligados, sendo um parte do outro, ou onde um acaba o outro começa. O próprio título da obra sublinha esta ideia ao aparecerem as duas palavras juntas, como se fossem uma apenas, e o intervalo entre uma frase e outra faz lembrar o bater do coração.

eis os amantes

Dois amantes envolvidos numa relação altamente egoísta, em que nada mais existe que não os seus corpos. A envolvência e a proximidade é tanta que eles são como irmãos, unidos pelo amor e pelo puro prazer. Neste poema, Augusto de Campos dispõe as palavras de forma a que elas próprias se tornem intervenientes na história que pretende contar. É por isso que, na sua maioria, as palavras apareçam justapostas e aglutinadas, lembrando a união dos corpos durante o acto sexual. O poema está escrito a duas cores, azul e laranja, representando a parte masculina e a feminina, provavelmente. No início do poema as palavras formam uma única fila vertical ("eis os sem senão os corpos"), separando de um lado "amantes" e do outro "parentes", como que mostrando a necessidade que os amantes têm de estar sós, sem a intromissão da família, pois este é um momento apenas deles. Depois, temos dois grupos de palavras aglutinadas, um à esquerda e outro à direita, e, no final desta parte, aparece uma única palavra, representando a penetração, em que um se funde no outro. Segue-se uma linha de letras que vai de um lado ao outro. A ejaculação, e o fim do coito, é simbolizado pelo seguinte verso, "semen(t)emventre", ou seja, o sémen, que pode ser também semente, é colocado no ventre da mulher. O poema é finalizado com uma referência à reprodução humana, em que "estesse" dão origem "aquelele" e "inhumenoutro", isto é, dois, quando se entregam um ao outro, originam outros.