terça-feira, outubro 14, 2008

Amor, de Clarice...

O conto "Amor" de Clarice Lispector tornou-se poema hipermédia, pela mão de Rui Torres e colaboradores. Algo que antes era uma narrativa de leitura linear, com princípio, meio e fim bem definidos (literalmente, preto no branco) foi transformado numa sequência interactiva de frases, imagens, sons e vídeo que nos remetem para o universo do conto.
A conjugação dos diferentes media realça a experiência de Ana, personagem principal do conto e protagonista do poema, e o seu mundo interior. Somos transportados para o caos existencial, para as questões e tormenta daquela dona de casa, cujo mundo se desmorona e reconstrói à volta de uma sucessão de acontecimentos triviais.
No poema hipermedia, as letras que circulam no ecrã, formando expressões aparentemente desconexas, e a música e voz que são ouvidas, quase como ecos de consciência, lembram um pouco a mente de alguém, o processo de pensamento de uma pessoa. Os vídeos a que se pode aceder, em determinados capítulos do poema, são quase como memórias. É um pouco como se invadíssemos a mente de uma pessoa que se encontra a interpretar o conto. Palavras e expressões-chave são repetidas ("o mal estava feito"), para enfatizar determinados sentimentos e situações, tal como no conto. De facto, o sentido de "Amor", não é alterado na sua forma de poema hipermedia.
Vemos diversas fases do conto de Clarice Lispector a "boiar", sob a forma de versos alternados, num mar de palavras, que parece não ter sentido excepto aquele que lho atribuirmos. No entanto, tal como o conto, o poema hipermédia, demonstra a náusea existencial de Ana e transmite a ideia da perturbação, tanto pelas frases soltas que ora aparecem, ora desaparecem, ora são mudadas de ordem (pelo leitor), como pelas características do vídeo (iluminação, loop, utilização de imagens relativamente abstractas e com cores contrastantes), ou mesmo pela voz masculina que nos conta a história ou repete aleatoriamente versos. Tudo contribui para uma experiência diferente de leitura e interpretação, apesar de a história de Ana continuar, no fim de contas, a ser a mesma.