"Amor", Clarice Lispector - O Amor, sentimento como nenhum outro
Clarice Lispector conta-nos em "Amor" a história de Ana, uma mulher entre tantas outras. Ana leva uma vida regular e previsível, a seu gosto, pois "assim ela o quisera e o escolhera". Como tantas outras mulheres, Ana tem filhos, marido e cozinha assim como uma grande necessidade de harmonia com tudo o que a rodeava. Recorda-se da sua juventude como um período distante e estranho, do qual apenas sobrevivem memórias em que projectava uma vida completamente diferente. Descobriu, contudo, "que também sem felicidade se vivia", conformando-se com o dia-a-dia que o destino lhe presenteou.
Ana tem uma única preocupação: a "hora perigosa da tarde". Esta é a hora em que todo o mundo que construiu à sua volta sobrevive sem o seu olhar atento. As crianças e o marido estão fora de casa, as louças estão lavadas, o chão está limpo e os móveis sem pó. Mas até esta hora perigosa está controlada por Ana. Descobriu que a pode ultrapassar saindo de casa, seja para fazer compras ou outros afazeres. E é num dia como tantos outros, nessa hora perigosa, que Ana está no autocarro, já com as suas compras, vencendo mais uma vez. Subitamente depara-se com um cego, como tantos outros, mascando chiclet.
Sem saber bem porquê, Ana fixa o seu olhar e a sua atenção nesta personagem. Impressiona-a o seu movimento de mastigação, em que parece que sorri e deixa de sorrir, várias vezes. É tanta a atenção dada por Ana, que nem repara que o autocarro recomeça a sua marcha, deixando cair o seu saco e partindo os ovos que lá iam.
A hora perigosa da tarde venceu... Ana perdeu o controlo de algo. Os ovos que havia comprado não iriam chegar a casa. "O mal estava feito". Para Ana, o mundo deixava de fazer sentido. Quando até na sua vida controlada e rotineira, em que tudo parecia estar na sua alçada, algo de imprevisível acontecia como é que tudo o resto poderia continuar de pé? A insustentável leveza dos ovos chocou com a sua vida, deixando-a náufraga sem destroços a que se agarrar.
E é como náufraga que Ana se apercebe que desconhece o sítio onde saiu do autocarro. Aos poucos repara que está na zona do Jardim Botânico e para lá caminha, dando cada passo como se estivesse noutro planeta. Neste Jardim como tantos outros, Ana encontra um admirável mundo novo, assustador e maravilhoso, belo e selvagem. Observa a vegetação e os animais e um misto de sentimentos invade-a e, pela primeira vez em muito tempo, Ana vive. É assaltada por sensações reais, sensações que há muito se esquecera que existiam, pois a redoma de vidro que fabricara na sua cozinha impediam-na de as ter.
Ana lembra-se das suas crianças e acorda do sonho. Correndo, chega a casa, mas esta parece-lhe estranha. Estranha a sala, as maçanetas, os vidros, a limpeza, estranha até o filho que a vem abraçar. Tem medo do contacto e afasta-o. O olhar seguro com que encara a mãe, destroça-a. Ana descobre em sua casa um pouco do Jardim, nas aranhas por trás do fogão, nas formigas da cozinha, na flor na jarra. Agora que tinha vivido como nunca viveu, toda aquela vida lhe parecia vazia. A redoma sufocava-a.
Seguiu-se um jantar de família, como tantos outros. As conversas e os risos inundavam a mesa e as crianças animavam tudo à sua volta. Ana compreende a fragilidade que estes momentos têm, como é fácil que acabem, como um cego mascando chiclet pode pôr termo a tudo o que temos como garantido. E, assim, "Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu". Após o jantar, Ana ouve um estrondo na cozinha e corre para ver o que é, alarmada. O marido desdramatiza, abraçando-a e Ana, vencida, vai com ele.
Ana vive mais num dia do que em toda a sua vida. O seu encontro com um cego que masca chiclet torna-se numa viagem de auto-conhecimento, pois na verdade Ana não se conhecia, tal como não conhecia nada. Assim como todos nós. Todos nós que vivemos em redomas, tanto nas nossas cozinhas, como nos nossos quartos e escritórios, nem essas redomas conhecemos. Vivemos uma vida planeada ao pormenor, sempre com o medo que chegue aquela hora da tarde, em que reina o imprevisto. Cabe a cada um encontrar o nosso cego, explorar o nosso Jardim Botânico e viver o Amor, não como tantos outros, mas o nosso.
"Amor" de Clarice Lispector, podia ser um conto como tantos outros. Mas não é.