Amor de Clarice
Quando Ana salta para o exterior da tela colorida em que participava avidamente a partir da sua casa e vida doméstica, o mundo do Jardim Botânico lhe desaba em cima da consciência, o mundo que até então lhe era querido e não pensado; afinal Ana era apenas uma das suas personagens, talvez a que está à varanda do apartamento.
Os dias a que assistira até então, de desmaio e de pó, são absolutamente calcados por uma imensa vitalidade, figurada pelas patas luxuosas da aranha e pelo espectáculo que a natureza fazia rebentar pelo jardim. Dentro dela, estoura amor, amor indizível e primordial, de bondade e de marfim.
A efervescente e perigosa hora da tarde finalmente raiava e Ana, além de gozar da juventude, se delicia e se atormenta com as emoções que nela dançavam. As sensações de Ana são, nesta parte, incrivelmente femininas.
Entretanto a puerilidade e o papel maternal não coexistem, e pelos filhos, pelo estalido do fogão e pela mão do marido, Ana regressa ao calmo e pitoresco sono anterior. Tão categoricamente como pela primeira vez.
Não é censurável, de todo. Ana despiu o traje de deusa, para vestir os filhos e aquecer o marido – é um altruísmo esquecido e igualmente digno – os bancos continuam sujos com a fruta que cai, as aranhas ainda se pregam nas árvores e os gatos jamais deixarão o porte de realeza. E lá no fundo é o nosso cego que sempre espreita.
Há muitas pessoas e “o mundo inteirinho se enche de graça e fica mais lindo por causa do amor”.