sexta-feira, abril 14, 2006

escritas sobrepostas

Os acrílicos de Bartolomé Ferrando são compostos por palavras sobrepostas, formando diferentes padrões sobre um fundo de cor. Aos leitores é-lhes pedido que destrincem as letras e as palavras, isto é, que des-sobreponham as escritas. Com este exercício, as "escrituras superpuestas" dirigem imediatamente a atenção para o acto de ler nas suas múltiplas ressonâncias: ler como decifração de traços, ler como reconhecimento de signos, ler como vocalização de uma notação gráfica (interpretação vocal), ler como interpretação (interpretação semântica). A extraordinária complexidade da escrita torna-se assim o tema desta série de obras. O que tem a escrita de particular? É apenas um código de segunda ordem, isto é, que representa o código linguístico (neste caso, de um modo alfabético)? Que outras possibilidades de sentido contém a escrita? Sendo também uma forma de notação fonética (que nos diz como criar pausas e associações entre os signos, como criar ênfases, como tornar o ritmo mais lento ou mais rápido), que papel cabe ao intérprete? Como é que este encontra o seu lugar na notação que a escrita constitui?

Vejamos os dois pequenos palimpsestos escolhidos: "o som incrustado em si mesmo alberga absorto o seu próprio nascimento" e "escreve e caminha sobre a sua própria página oca escrita voz". Como todas as figuras da série, também estas são auto-referenciais, isto é, contêm antes de mais uma descrição de si mesmas. O "incrustado em si mesmo" e a "sua própria página" remetem para a sua própria disposição na página. Num caso, o texto visual parece dizer alguma coisa sobre a escrita como notação para o som. Noutro caso, o texto visual parece sugerir a escrita como qualquer coisa que excede a voz ou que é voz por si mesma. Esta tensão entre representar outra coisa (o som) e ser (o traço da escrita) parece constituir o cerne deste conjunto de obras. Por outro lado, podemos ver aqui um exemplo consumado de arte inter-media, isto é, de uma prática artística em que a dimensão literária e a dimensão pictórica não são separáveis.