quinta-feira, março 23, 2006

A leitura tem saída?


Qual a especificidade da leitura em ambiente hipertextual? Esta pergunta pressupõe pelo menos alguma espécie de resposta prévia sobre o acto de leitura em geral. Os textos concretos são objectos relevantes para ligar a resposta às duas perguntas (o que é ler? e o que é ler hipertexto?), justamente porque muitos textos concretos são exercícios de leitura. Isto é, são textos que se oferecem à leitura com a intenção de fazer o/a leitor/a reparar nos seus actos de leitura e tornar conscientes os processos envolvidos na leitura. Desde o processo de decifrar a letra ao processo de formar sílabas e palavras: pede-se aos/às leitores/as que desautomatizem o processo e que criem ou preencham os espaços necessários para estabelecer as relações entre os sinais gráficos que chamamos escrita. Não se trata apenas de soletrar, mas de reletrar, isto é, de percorrer um conjunto de caminhos possíveis entre os signos.

Talvez seja necessário não confundir a leitura de textos constelados, isto é, de textos que oferecem várias sequências ou percursos possíveis (como elementos da sua estrutura de composição) com a ideia de liberdade de interpretação. A liberdade de interpretação é inerente ao acto de leitura: ela decorre da natureza da linguagem e dos signos, e da interacção que se estabelece entre um dispositivo textual e um/a leitor/a. Podemos constranger a liberdade de interpretação através de códigos ou de terminologias, mas não se pode (felizmente) eliminá-la. O/A leitor/a é sempre livre. A diferença específica que alguns textos combinatórios e intermediáticos introduzem é a seguinte: o/a leitor/a tem de tomar decisões semióticas, isto é, decisões sobre a organização dos signos, e não apenas decisões hermenêuticas, isto é, decisões sobre o significado de uma organização textual inteiramente pré-dada. Num sentido hermenêutico, a leitura é interactiva, na medida em que os signos fazem sentido na relação interpretativa específica que o/a leitor/a estabelece com eles.

Quando se fala em interactividade no contexto digital, há pelo menos dois sentidos a distinguir:
1) num sentido técnico, o computador é interactivo porque responde em tempo real às instruções que o utilizador lhe dá por meio do teclado e do rato e das operações que os programas desencadeiam nos circuitos lógicos da máquina;
2) num sentido semiótico, a obra ou texto é interactivo se as suas propriedades textuais materiais não estiverem inteiramente determinadas sem a intervenção do/a leitor/a.
Repare-se que, neste segundo caso, não é uma questão de interpretação (já que a interpretação, por definição, nunca está determinada sem a intervenção do/a leitor/a), mas sim uma questão de realização ou actualização de um dispositivo sígnico que existe como feixe de possibilidades alternativas. O leitor age gerando parte do texto que lê.

Dir-me-ão: mas as possibilidades de gerar combinações, por muitas ou por muito aleatórias que sejam, já estavam, de algum modo, contidas no algoritmo ou na regra que gera o texto, automaticamente ou com a intervenção do/a leitor/a. Sim, é verdade. Dir-me-ão: muitas das realizações ou actualizações possíveis nem sequer são interessantes de um ponto de vista semiótico ou hermenêutico. Sim, é verdade. Por outro lado, também é verdade que algumas das possibilidades são interessantes e que este tipo de dispositivo ou motor textual alarga o sentido da noção de "obra aberta".